Nas gravações digitais de música popular a última fronteira já foi rompida há muito tempo. Desde a virada do milênio, famosos e anônimos, talentosos ou nem tanto, utilizam habitualmente os programas Auto-Tune e Melodyne, que "afinam" eletronicamente qualquer eventual desafinada da voz do cantor. É um "Super Afineitor" que não é Tabajara mas acaba com os problemas dos cantores e já faz parte do cotidiano dos estúdios do mundo. Nos shows ao vivo, de veteranos e iniciantes, o uso de bases rítmicas e efeitos pré-gravados, incluindo vocais, é habitual, sem que o público perceba, ou sequer esteja interessado nisso. O playback, a dublagem, as vozes dobradas, não são fraudes, são recursos criativos em megaespetáculos multimídia, como os de Madonna. Que sentido ainda há, se é que ainda há algum, na ideia de "cantar bem" como um valor absoluto na música pop? Hoje a voz é apenas um dos múltiplos elementos do produto musical. Assim como no jogo do bicho vale o escrito, na música digital vale o mixado, e pouco ou nada interessa como aquelas sonoridades foram produzidas, processadas e organizadas em formato de música. Vale como soa aos ouvidos de quem ouve. Gosta ou não gosta? Sente ou não sente? Dança ou não dança? Na era do photoshop, da computação gráfica, da engenharia sonora, uma das características da produção de arte e entretenimento é o "verdadeiramente falso". Assim como a pintura acadêmica foi atropelada pela fotografia, abrindo caminho para a arte moderna, a música digital não busca imitar a natureza e seus sons acústicos, mas transformá-los e manipulá-los em novas sonoridades. Samplers, remixes e colagens ampliaram os conceitos de autoria e originalidade. O que vale agora é o resultado final. Mas se o "Super Afineitor" já existisse no tempo de Nara Leão, Sylvinha Telles, Isaurinha Garcia, Dalva de Oliveira, Carmen Miranda, Maysa, Clara Nunes, Rita Lee, Maria Bethânia e outras cantoras maravilhosas e nem sempre tecnicamente perfeitas e afinadas — mas sempre expressivas, sinceras e emocionantes — a música brasileira teria sofrido um prejuízo irreparável. Texto publicado a 07.08.2009 em "O Globo".
2 comentários:
Tantas vezes nós percebemos que certa voz tem "efeito", especialmente nos concertos ao vivo. Muitas vezes recorrem a coros (tipo background vocals) e o artista principal pouco canta. Mas percebe-se, pelo menos a um ouvido atento. Assim como se percebe quando uma voz é realmente boa. Geralmente porque não precisa de artifícios. De resto, quanto às artistas que o autor refere e cujas desafinações por vezes existem, estou totalmente de acordo. Que se lixe a desafinação, são cantoras genuínas e pêras!!!
E estou convicta que, recorrendo-se cada vez mais a este tipo de correcção, os intérpretes tendem a descuidar o seu trabalho. Se correr mal, mexe-se e pronto. Deixa de se preparar os trabalhos com cuidado e antecipação, "poupam" tempo e dinheiro em ensaios. A Música sai a perder!... Todos ficamos a perder.
Faz-me lembrar o uso do corrector, nas escolas. Deixou de se pensar antes de escrever. Escreve-ve e corrigi-se posteriormente. Sinto que os alunos não estruturam mentalmente o seu texto :(
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