quinta-feira, julho 24, 2008

Pois é: o silêncio cada vez é mais raro...

Alice vieira
publicado a 2008-07-06
Há muito tempo que a Baixa não me parecia tão bonita. Passava pouco das nove da manhã, e confesso que já nem me lembrava de quando tinha sido a última vez em que tinha subido a Rua Garrett a essa hora. Mas ontem eu tinha tempo e aproveitei para andar pelas ruas - e descobri lojas lindíssimas, velhas mercearias recicladas, um café austríaco, galerias de arte, montras com produtos originais, diferentes da produção em série que os grandes espaços apresentam - e até uma nova estátua do Pessoa, mesmo em frente da casa onde nasceu! Não sei se a estátua será para ficar ou se se trata de uma daquelas instalações que andam de um lado o para o outro - e, para dizer a verdade, não me tocou muito. Se calhar é de escultor famoso, não duvido, mas confesso que preferia ver o poeta de cara descoberta, a vê-lo de cara completamente tapada por um livro. Muito honestamente, prefiro o piscar-de-olhos-ao-turista do poeta de bronze na esplanada da Brasileira, com aquela cadeira vaga, esperando eternamente por Ofélia que, evidentemente, nunca há-de aparecer, nem nunca ali há-de comer chocolates, demasiado carregados de metafísica e calorias.


Mas havia qualquer coisa naquela manhã que me fazia gostar especialmente da cidade. Eu tentava entender o quê, mas não conseguia. Era qualquer coisa que tornava a manhã muito doce, muito nossa, muito princípio do mundo. Só muito depois consegui descobrir o que tornava tudo tão especial: era o silêncio!


Àquela hora, no Chiado, ainda não havia música!


Há quanto tempo eu não começava o dia num lugar sem música! Ele é o ginásio, com música à porta, música enquanto andamos na passadeira, música quando passamos para as máquinas, música na piscina, música nos balneários; ele é o supermercado, com música da porta da entrada à porta de saída; ele é o metro, ainda com mais música. E os elevadores, e as lojas, e os cafés. Música por todo o lado. Por isso, a Rua Garrett me pareceu tão diferente, e a cidade tão bonita. Claro que voltei a correr para casa: aproximava-se a hora fatídica do crime, ou seja, a hora em que chegam os "animadores", os altifalantes das lojas de discos - e lá se ia a magia.

Mas, por algumas horas matinais, a Baixa foi um oásis de paz. Como se o tempo tivesse parado.
Era até quase capaz de jurar que, da porta do "Au Bonheur des Dames", a Tatão ainda esperava pelo Ribeirinho.

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