quarta-feira, fevereiro 20, 2008

De pequenino se aprende a tocar violino

A MÚSICA, DE PEQUENINO...

Vasco Graça Moura
escritor
20.Fev.2008
DN online

É importante que haja nas escolas uma abordagem da música mais geral, mais completa e mais profunda do que a das inócuas aulas de canto coral que havia no meu tempo. Essa actividade deverá reconduzir alguma formação ministrada na área musical à preocupação de proporcionar o acesso às grandes formas de expressão artística, sem as quais não há educação digna desse nome e se continuará a produzir uma geração de analfabetos culturais com consequências terríveis no futuro. Algumas dessas consequências nefastas já estão à vista no dia-a-dia, como a deficientíssima utilização da língua portuguesa ou a praticamente inexistente relação das gerações mais jovens com a herança cultural e os bens e valores da cultura.
Mas nada disso implica que se dê uma machadada no ensino musical especializado. É inadmissível que se extinga o ensino especializado ministrado pelos conservatórios de música e que torna possível às crianças uma articulação da aprendizagem musical com o ensino genérico que elas são obrigadas a seguir.
As personalidades ligadas ao sector têm defendido pontos de vista sustentados na experiência, na realidade sociológica e nas especificidades do ensino musical. Não é pelas chamadas "actividades de enriquecimento curricular" que tal objectivo pode ser alcançado. Nelas, a música pode ter tanto cabimento como, por exemplo, o xadrez, que continua ausente da maioria das nossas escolas e poderia ser um importantíssimo instrumento de formação e disciplina do raciocínio. Mas um enriquecimento curricular não é, nem pode ser, a mesma coisa que uma formação especializada, ao alcance das famílias no tocante a custos, e que tem, necessariamente, de ser ministrada desde muito cedo.
O ensino da música "a sério" deve começar na infância, em estabelecimentos de ensino vocacionados para essa tarefa, sem prejuízo da frequência dos graus correspondentes do ensino básico. Não se deveria mexer no que, a despeito de todas as dificuldades, vai funcionando contra ventos e marés. A não ser que seja para dotar esse ensino de melhores condições, não para amputá-lo de uma função e de uma vocação essenciais.
Se o projecto ministerial visa acabar com o ensino de frequência supletivo, prejudicará a possibilidade de combinação do ensino especializado com o ensino geral. Não se afiguram claros os objectivos da ministra quando fala em protocolos entre as escolas especializadas e as do ensino básico em geral. Se é assim, porque é que os conservatórios não hão-de prosseguir normalmente a sua actividade?
As crianças dos seis aos nove anos que frequentam o ensino especializado, pela lógica da reforma projectada, arriscam-se a ser mergulhadas numa geral confusão que impedirá cada uma delas de se dedicar ao instrumento para que tem vocação e de ter real aproveitamento nessa aprendizagem.
As modalidades agora chamadas de formação integrada não auguram nada de bom, mesmo que só sejam implantadas gradualmente. Por muito que se invoque o insucesso escolar num dos termos do binómio (o ensino básico), o remédio não pode consistir em se acabar com o outro. Lembremos à ministra que há duas verdades que não se excluem e não podem ser confundidas.
A primeira é a de que Portugal precisa de mais pessoas que saibam apreciar e compreender a música e, nessa vertente, o enriquecimento curricular, mesmo que oneroso para o Estado, tem toda a razão de ser, quanto à música e quanto às outras artes.
A segunda é a de que Portugal precisa de mais músicos com sólida formação e, nesse aspecto, acabar com as actuais possibilidades de combinação do ensino especializado com o ensino genérico é um grave atentado contra esse objectivo. De pequenino se aprende a tocar violino.

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